segunda-feira, 14 de março de 2011

ANGOLA - 15 DE MARÇO DE 1961 - OS MASSACRES DA UPA/FNLA

CAROS AMIGOS

Passam, agora, 50 anos sobre o início da revolta da UPA no norte de Angola. Centenas de portugueses e milhares de angolanos mortos. Uma guerra que se prolongaria 13 anos e continuaria, de outra forma, até ao novo milénio. A zona do Quitexe foi das primeiras a ser confrontada com este cortejo de desgraças. No texto anexo os autores descrevem as situações dramáticas que viveram e episódios que ajudam a compreender os caminhos que levaram àquela tragédia imensa. Textos fundamentais para a compreensão do conflito, escritos de forma tão impressiva que nos impede de ficarmos indiferentes devido à magnitude do drama humano e social então vivido, à sinceridade que se pressente no que os autores nos dizem e à forma simples, viva e directa como estão escritos.

Os melhores cumprimentos

João Luís Garcia

“Quitexe” - http://quitexehistoria.blogs.sapo.pt/






O Velho Canzenza


O velho Canzenza simbolizava a alma da velha cultura e do poder africano, exercido em paralelo com o da administração portuguesa. A solução dos grandes problemas surgidos no seio das
comunidades e no interior das sanzalas estava a cargo de Os Mais Velhos que eram pessoas de muito respeito, não só por serem velhos, mas pelo saber e experiência que tinham da vida africana. São, os mais velhos, homens como o Canzenza, perante os quais os mais novos se
curvam e batem palmas em sinal de muito respeito. Foi na pequena sanzala, logo à saída do Quitexe, na estrada que vai para Camabatela, que o velho Canzenza foi obrigado a fixar-se desde 1947/48 vindo de longe, da serra do Cananga. Lá vivia rodeado de uma numerosa família e era possuidor de grandes lavras de café.
A ordem do Muniputo (Administração Portuguesa) viera. Tinha que abandonar a sua serra e fixar-se junto à estrada, perto do Posto Administrativo do Quitexe, a uns 40 ou 50 Km.
A partir de 1949 o café começa a subir nas cotações internacionais, o seu preço aumenta. Em Luanda há uma corrida em direcção ao Norte. Todos querem ser fazendeiros: médicos, engenheiros, advogados, comerciantes, juízes, reformados do exército e também muitos aventureiros; vêm todos à procura do ouro negro.
As matas do Quitexe são as mais apetecidas e, assim, munidos de licenças de demarcação de milhares de hectares, vão espalhando tabuletas a assinalar a posse e ocupação dessas
extensas áreas. O Quitexe está transformado num verdadeiro “Farwije”.
Estamos no ano de 1951. O velho Canzenza é chamado ao posto onde o Chefe lhe diz que as suas antigas lavras de café na serra do Cananga e as matas em redor foram demarcadas por
um senhor médico, reformado do exército.
O Chefe do Posto intimou o Velho Canzenza para, no outro dia, lhes ir mostrar todas as lavras lá existentes. Ele, que três anos antes fora obrigado a abandoná-las, regressa, agora, para as
entregar ao branco vindo de Luanda.
Podia ser que o branco, em troca, lhe desse uma boa retribuição...
Há uma corrida em direcção ao Norte. Todos querem ser fazendeiros.
Mas o oficial médico, vestindo a sua farda militar, arroga-se em representante do estado português e, portanto nada tinha a pagar.
E, assim regressaram ao Quitexe, o Velho mais pobre e o branco, mais rico, talvez já colha, nesse ano, umas toneladas de café nas lavras abandonadas.
No dia 15 de Março o Canzenza ficara na sua sanzala que ficava a menos de 1 Km do Quitexe. Por certo saberia o que se tinha passado nessa manhã. Ao cair da noite, uma carrinha vinda dos
lados de Camabatela aproxima-se da sanzala. O velho lá está vestido com os tradicionais panos. Da carrinha são disparados tiros e o Canzenza cai ao chão.
A viatura não para, segue para o Quitexe e o R...... anuncia que acabava de matar o Canzenza. No dia 18 de Março o Quitexe está em pé de guerra, cheio de gente.
Por altura do meio-dia é dado o sinal de alerta, todos correm a pegar em
armas. Um preto, possivelmente um “turra” aparece de mãos no ar dirigindo-se para o Posto Administrativo. Aproxima- se e passa entre alguns brancos de armas apontadas. Vou ver de quem se trata e, meu Deus, que vejo eu! A figura imponente do velho Canzenza. Tal como
Jesus Cristo, que ao terceiro dia ressuscitou, também o velho Canzenza faz de novo a sua aparição no reino dos vivos.
Afastei-me cobardemente, para que ele não me visse. Eu não estava em condições de lhe poder valer, pois, dias antes, eu também havia sido ameaçado de morte pelos brancos. Horas mais tarde, soube que havia sido entregue à Pide e tinha sido levado para o Uíge para interrogatório.
Pobre Canzenza, por certo nunca mais voltaria e as autoridades portuguesas teriam perdido um dos elos mais fortes do convívio pacífico entre os Portugueses e os Africanos: apesar de
tudo, Os Mais Velhos gostavam dos Portugueses!
JOÃO NOGUEIRA GARCIA.


João Nogueira Garcia rumou a Angola, em 1947, com uma carta de chamada do seu irmão Alfredo que se instalara em Porto Alexandre uns anos antes.
Natural da Várzea Grande (Vila Nova do Ceira) chegou a Angola com 21 anos, com uma mala cheia de esperança.
Rapidamente a sua experiência no comércio lhe permitiu construir a sua própria casa comercial no posto administrativo do Quitexe, na zona do Uíge, a terceira a ser edificada no local.
O bom relacionamento e o respeito que nutria pelos povos desta região angolana foram fundamentais na expansão das suas actividades.
Já em colaboração com o seu irmão Alfredo foi também agricultor de café e industrial. No Quitexe, que rapidamente cresceu e se tornou vila, nasceram os seus filhos. Envolvido na barbárie que toldou os espíritos de angolanos e portugueses em Março de 61, soube afirmar o seu carácter no respeito pela dignidade humana, contra a violência, a vingança e o terror. Veio a falecer em2006, com 79 anos, deixando- nos o relato desses dias negros no repositório de memórias que é o livro “Quitexe 61– Uma Tragédia Anunciada”.

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